quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A falta Savoir Faire de Timor-Leste....



Afinal não foi assim há muito tempo, no entanto a falta de memória continua a afetar uma grande percentagem de pessoas.... Se remontarmos a 1999 todos nós nos recordamos da crise vivida em Timor-Leste quando as forças de oposição à independência deste país atacaram civis e criaram uma situação de violência generalizada, principalmente na capital, Díli. Imagens horrendas entraram nas nossas casas de forma galopante assolando-nos a alma .Todos nós ficamos prostrados e comovidos apelando a uma grande onda de solidariedade nacional.
Assistimos expectantes ao renascer de uma nação. Os pilares fundamentais que caracterizam um povo sempre estiveram inscritos nos mesmos, contudo, se colocarmos o holofote direcionado para o campo de direitos e democracia nas verdadeiras aceções das palavras, percebemos que, presenciamos um momento histórico, o erguer de uma nação!
É com alguma tristeza que observo as decisões do
governo timorense relativamente à expulsão dos magistrados estrangeiros, mais concretamente dos portugueses. O sistema judicial timorense é imberbe e tem contado com o apoio incondicional de profissionais portugueses na resolução e criação de infraestruturas e soluções. Em 2000, com o país em convalescença politica, as Nações Unidas desenvolveram um trabalho extraordinário distribuindo panfletos de helicóptero  solicitando em tetum e bahasa a presença de pessoas que tivessem estudado Direito ou que tivessem trabalhado em tribunais.Posteriormente foram surgindo nacionais que começaram a dar forma e a preencher um aparelho judicial. Começou-se a trilhar um caminho marcado por passos vigorosos imbuídos de esperança.
Depois de avivada a memória, é com inquietação e tristeza que constato que toda uma história marcada pela grande cooperação entre estes dois países, Portugal e Timor-Leste, ficou reduzida a notícias tendenciosas atinentes à expulsão dos funcionários judiciais portugueses. A falta de savoir faire no tratamento desta questão, perante o mundo inteiro não foi exemplar. A polémica assumiu contornos nacionais acabando por envolver toda a comunidade portuguesa, gerando polémica e despoletando revolta. Para além de estarmos perante um verdadeiro atentado aos valores básicos do Estado de direito, uma grosseira violação da independência do poder judicial, existe também um grande desrespeito para com a comunidade portuguesa que sempre apoiou este país.
Lamento que todos os esforços reunidos ao longo destes anos resvalem de uma maneira tão vertiginosa para um mar de interesses económicos, um mar com cheiro a petróleo, com ondas revoltas de corrupção e peixes gordos onde as redes de pesca têm uma malha larga!

A afiada espada de Dâmocles continua afiada e suspensa sobre muitas cabeças...

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Efemeridades do bronze!!

Ah que maravilha! Chega Agosto e ruma tudo a Sul! Preparam-se as malas varonilmente com os melhores vestidos, uma panóplia infindável de sapatos, bikinis e mais triquinis. Discute-se com os amigos à porta de casa porque “alguém” tem malas a mais e a gestão do espaço no carro está difícil. Esboçam-se sorrisos com puerícia e as portas do carro fecham-se. O quadro típico de Agosto.

É a época mais esperada em todo o ano. Fazem-se poupanças nos meses anteriores para “sobrar mais algum” para os sunsets e jantares. O ritmo do desporto também aumentou exponencialmente, há que estar em forma para pisar a popular e concorrida areia do Sul. Um sol abrasador, miúdas giras de bikini passeiam na praia, rapazes apóstolos acérrimos do novo conceito spornstar palmilham a costa apreciando as mais recentes novidades do mercado, as hormonas frenéticas sobrevoam o areal, tudo isto tem uma hermenêutica: bem-vindos ao All Garve! Ir para a praia já não se coaduna com aquele conceito idílico de paz e harmonia onde se sente a simbiose com o mar e se exorcizam as agruras que nos molestam a alma, não, nada disso. Quem quiser fazer esse exercício corte à direita na auto-estrada para a Costa Vicentina. No All Garve ir para a praia implica toda uma dinâmica complexa entrelaçada com uma indumentária “in”. Acabaram-se os chapéus à pescador e os velhos trapinhos. O desfile é tão intenso e os olhares tão peremptórios na orla das vaidades que qualquer rapariga à beira mar se sente um pouco constrangida com o que a circunda. Múltiplos problemas surgem nesses momentos, ou é a depilação, ou a barriga ou a celulite, ou sei lá o quê. Contudo elas assumem uma postura vertical, passam os dedos pelo cabelo, encolhem a barriga e olham no horizonte como se nada fosse, há que ter fé absoluta na chia, na linhaça, no chá verde e nos sumos detox! Os Homens que me perdoem mas as mulheres são muito mais astutas na arte da subtileza, mesmo que queiramos não olhamos para trás (pelo menos nos segundos subsequentes).
Final de tarde, o ambiente menos cálido convida aos sunsets, vislumbra-se os tão apreciados mojitos, gin tónicos e caipirinhas, celebra-se a vida, o amor ou…o efémero Verão. Ambientes afrodisíacos, polvilhados com sorrisos tímidos presos em palhinhas e olhares ainda com sal. Talvez se tenha coragem para falar com a rapariga que vimos à beira mar, pois já existe um maior catalisador.
Seguem-se os jantares com amigos, os passeios na red carpet de Vila Moura, a busca pelas pulseiras para entrar nas discotecas que estão em voga, as selfies que irradiam alegria e felicidade pigmentadas pelo bronze, o número de amigos no facebook aumenta e o mesmo enche-se de fotografias de transpiram bem-estar e jovialidade. Será que tudo isto é genuíno? Não estaremos a viver ambientes demasiadamente plásticos? Eu adoro o Algarve e todo o tempo que lá passo com os meus amigos, mas infelizmente os cenários que nos acariciam não são os mais epicuristas e a felicidade que se vive não me parece a mim que nasça do coração, pois é macilenta e temerária.
Aproxima-se languidamente o mês da ressaca, Setembro e as espectrais responsabilidades de mãos dadas com ele. Parece que nos sussurra ao ouvido “ pssstt acabou-se o bem bom, vá, começa a pensar naquilo que te espera.” Despedimo-nos do querido mês Agosto com um sentimento não amargo mas salgado, a nostalgia vai-se instalando. E é assim, vamos todos regressar para os nossos homónimos que nos esperam calmamente em casa, com as mesmas roupas e posturas, o heterónimo revoltou-se, fartou-se e foi de férias, mas regressa sempre, pois não vive sem ele!

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Alice no país das maravilhas

Uma porta fecha-se. Uma porta abre-se. Há uma chave no chão mas é muito pequena. Outra lá ao fundo mas muito grande. Alice no país das maravilhas. Tenho a chave certa mas sou muito grande para a porta. Tomo um elixir mágico que me torna pequenina e abro a porta. Uma porta muito grande mal consigo avistar a fechadura. Tomo um elixir mágico e abro outra porta. Onde estou? Quem sou?
“Alice, Alice por aqui” – ouço eu do fundo de uma floresta.
Desço um escorrega de mil cores. Caio em cima de um cogumelo que me “trampoliza” para um labirinto infinito de trilhos e caminhos que se abraçam. Tocam à porta, espreito pela fechadura, é o carteiro. Oh o carteiro !No reino não há cartas só há sonhos endereçados sem selo e envelope. Continuo a correr em cima de flores que falam e sorriem, faço-lhes cócegas com os dedos. Avisto um gato gordo e filosófico às riscas roxas e cor de laranja. Fumava e falava comigo por sinais de fumo. Que tontinho que ele é.
- Gato carnaval, qual o caminho para sair daqui? – pergunto eu com a mão na anca.
- Depende, onde é que tu queres chegar? – exclamava ele com ar de dandy.
- Não importa muito o sítio… - digo eu desabafando.
-Então qualquer caminho serve ! – sibilava o gato gordo.
Tudo louco nesta realidade. É a lagarta com perguntas existenciais, o coelho que não me larga sempre a lembrar-me que estou atrasada, que mundo diferente, que mundo delicioso. Troquei os pontos cardeais. Brinco às escondidas com a minha sombra. O meu coração é bucólico. A minha alma miscível com a das árvores. Tudo tem cheiro e textura. Aqui vivo a apoteose da infância. Vive-se epítomes em segundos. Aqui não existe a teleologia. Baralho o relógio e caminho ao contrário, tudo é como eu imagino.

De repente ficou escuro, alguém tinha desligado o interruptor da luz. Um homem abre uma porta. Não percebo logo quem é. Espero mais um pouco e quando ele se aproxima com aqueles ponteiros a abanar vejo que é o Sr.º Relógio. Está na hora de acordar e de fechar todas estas portas. Agora é hora de aconchegar o sonho na cama. Está na hora de ele abrir portas e sonhar. Vamo-nos revezando para o manter sempre com a porta aberta.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Um Herói, um Homem Justo, um Homem bom!



Hoje é um dia muito importante. Faz hoje precisamente 60 anos que um herói nacional morreu. Um herói pouco conhecido e reconhecido infelizmente…Ele é só a honra da nossa pátria e, nas palavras da escritora Gisèle Allotini “se os Portugueses se parecem com Ele, são um povo de cavalheiros e de heróis”.
Esse herói nasceu em 1885 em Cabanas de Viriato, era um Homem infinitamente bom, um Homem justo! Um exemplo ímpar da verdadeira grandeza de espírito. Um Homem que salvou milhares de pessoas durante o holocausto! Pugnou até ao fim dos seus dias pelos seus princípios, agarrado à máxima “Se há que desobedecer, prefiro que seja a uma ordem dos homens do que a uma ordem de Deus”. Defendia que a “hospitalidade não tem cor nem é guiada por qualquer sentimento que não seja a virtude humana de solidariedade perante a desgraça desarmada, a desgraça inocente ou o apelo desinteressado”.
Fez tudo isto contra as ordens funestas superiores e foi repreendido por isso. Expulso da carreira diplomática, afastado dos seus 15 filhos dispersos pelo mundo, foi empurrado por dedos duros e impiedosos, directivas do governo de Salazar, para a rua da miséria tendo de queimar as portas de sua casa para se manter quente. Fazia parte da fila da sopa dos pobres, morreu na pobreza em Lisboa no Hospital da Ordem Terceira e foi enterrado com as indumentárias da Ordem dos Frades Menores, tal era a sua miséria extrema.
Quem era esse Homem que teve uma vida tão injusta? Como pode um Homem tão bom ter tido um final tão frio e desconsolado? É este o preço de uma consciência virtuosa?
Entristece-me a alma pensar em como a vida e as circunstâncias podem ser tão lancinantes. Apetece-me gritar tão alto e tão veementemente até que a minha voz recue a 1939, para penetrar aquela atmosfera mórbida e dizer-Lhe que é uma pessoa inebriante. Apetece-me abanar a sociedade daquela época, o poder modorrento e inexorável e dizer-lhes nos olhos de uma forma tão profunda até lhes varar a alma que, Ele foi um dos Portugueses mais importantes que nós tivemos…
Seis décadas se sucederam desde a sua morte. A sua casa continua a lutar contra as intempéries. Vai desabando lentamente, engolindo-se paulatinamente. Cansada e desgastada pelo último inverno rigoroso vai-se vergando à inércia humana. Continua fechada, inerme e sombria a casa da família de um Homem que foi o albor de muitas vidas, que lutou contra o ambiente infausto da 2.ºGuerra Mundial, que abnegou a morte e o anti-semitismo, que possibilitou a perpetuação de famílias, multiplicação de sonhos e que protegeu o amor…
Esse Homem chama-se Aristides de Sousa Mendes, era o exemplo máximo da bondade e da coragem que trilhou o caminho para a liberdade e igualdade.
“Religião? Pouco importa, assina-se!
Origem “étnica”? Não tem importância, assina-se!
Judeu, Católico, protestante? É tudo o mesmo, assina-se!
Russo? Assina-se!
Apátrida? Assina-se
Vou salvá-los a todos” 
Era a sua promessa….
No meio do desespero da pobreza, prostrado ao opróbrio, Aristides de Sousa Mendes chegou a escrever uma carta ao Papa, à qual nunca teve resposta: "Há muito que espero que uma palavra de Vossa Eminência possa consolar o meu coração inquieto, mas essa palavra ainda não chegou (…) Há muito que perdi a confiança na justiça terrena, não, porém, na justiça divina. Se andei mal em salvar os judeus das garras do Anticristo, faça-me Vossa Eminência a caridade de mo dizer para que eu possa proclamar aos meus filhos o bem e a justiça da minha conduta para que eles possam orgulhar-se de seu pai.”


Sobem-me as lágrimas aos olhos comovidos perante tal soberbo exemplo de bondade e de grandeza. Hoje é dia de uma vénia mundial a Aristides de Sousa Mendes. Que a sua história se perpetue nos ecos do vento intemporal, nos inspire e que se aloje de forma permanente nos nossos corações para nos podermos tornar pessoas melhores, porque “quem salva uma vida, salva o mundo inteiro”, Aristides de Sousa Mendes salvou um mundo Inteiro!


terça-feira, 1 de abril de 2014

E se ninguém conseguisse mentir?

E se ninguém conseguisse mentir? E se todos nós fossemos obrigados à transparência da verdade? O que seria das nossas vidas e das nossas consciências? Até que ponto uma consciência tranquila é uma consciência verdadeira? Será que podemos ser assim tão maniqueístas?
Eu, penso que não. Não podemos viver sempre em duas cores tão fechadas que se encerram sobre si próprias. Não sou apologista da mentira eterna mas, também não sou apóstola de uma verdade prostradora. A verdade talvez seja perfeita para ciências exactas, mas não para a vida. Como se pode aplicar um conceito tão matemático e recto a uma vida tão literária com tantas curvas? Uma vida recheada de beleza, esperança e fé não se pode coadunar com a nudez de uma verdade certa, sem vírgulas, sem casas decimais. A verdade é um véu com cores infinitas, sombras intermináveis e reflexos isotéricos. A verdade deslinda-se e caminha sozinha, sonha e multiplica-se. A ambiguidade do núcleo da verdade vai do mar ao céu.
O celeuma desta questão é que o mundo inteiro sabe e acredita que um mais um são dois ou que dez menos cinco são cinco. Mas quando se fala em verdades que não têm forma e que não são palpáveis a verdade já não é assim tão verosímil. Quando se fala nos feitos de Aristides de Sousa Mendes, Nelson Mandela ou de Dalai Lama, há sempre alguém que diga que aquilo pelo qual pugnaram “não era bem verdade”. Esta obstinação pela certeza redonda e compacta desassossega-me. Toda a gente corre atrás da verdade, mas quando se desembrulha tropeçam nas buracos das dúvidas, inclinam-se de forma virtiginosa no abismo da incerteza e, ou dão um passo de fé ou um tiro no pé. Mas que verdade é essa tão tirana e ubiquista que trilha o seu caminho pelas cordilheiras vilipendiosas dos espaços da verdade? Onde começa uma meia verdade ou uma meia mentira?
A verdade está na nossa inteligência emocional, nos ouvidos do nosso coração, é acariciada pelos neurónios da sensibilidade. Mentiras? São verdades escondidas com parte da cauda de fora!




Regresso a casa


Regressar a casa e aterrar em Portugal depois de umas longas e intermináveis horas foi literalmente uma missão. Senti que a minha alma era dotada de uma elasticidade incrível, os pés em Portugal e cabeça ainda em Timor-Leste.

Chegar a casa é bom!A última recordação que tenho da porta de minha casa era das lágrimas dos meus pais e irmãos antes de partir e da agitação inconsciente dos meus cães, sabiam que algo se estava a passar mas não percebiam muito bem o quê...Timor-Leste felizmente para eles não fazia parte do léxico canino. Quando entrei no meu quarto a primeira recordação que me assolou foi a histeria da mala e dos espectrais 20 kg que ali se tinham vertido há 6 meses atrás:
-"Achas que isto tem mais de 20 kg?" - dizia eu aflita.
- "Não achas!Nem chega aos 15 kg!" - explicavam os meus irmãos. 
Enquanto isso já eu estava a pensar na cara da senhora do aeroporto que me poderia dizer hipoteticamente que teria de pagar excesso de bagagem, mas não, daquela vez passou!
Estava todo arrumadinho e diferente. A minha mãe comprou-me uma colcha nova cor-de-rosa com o meu tais colorido colocado no fundo da cama, afinal o quarto não estava igual!
Regressar é sempre um sentimento muito singular, vimos sôfregos de saudades e a transbordar novidades que se atropelam antes de lhe darmos vida, temos uma vontade infinita de mostrar aos outros aquilo que vivemos mas, não é assim tão fácil como parece. É como se o nosso cérebro estivesse em cima de um trampolim que não lhe dá descanso, e ele está ali a saltar, de um lado para o outro nas molas das perguntas sonoras das pessoas que o estimulam constantemente...e às vezes ele adormece, mas continua a saltar em constante efervescência... É engraçado as abordagens que são feitas"Já voltaste? E aquilo é giro? É muita pobreza não é? Ai agora aqui é que estás bem não é? Já não voltas mais pois nao? Tão longe..já acabou o martírio, aqui é que tu estás bem!".


Instaura-se um silêncio perturbador na minha cabeça.. é como se congelasse e começasse a reparar em cada expressão facial das pessoas fitando-as com um olhar complacente e ao mesmo tempo esboçando um sorriso lento e amarelo e quando reparo que as palavras terminaram a resposta mais comum e mais prática que me salta dos lábios é "Pois!". 
O que posso eu dizer? Que não vou voltar?Que não vou sair de Portugal seja para onde for? Que não gostei? Estaria a mentir.. e a verdade é que menti e minto...é mais confortável assim para todos. Um simples sorriso com dois significados e todos ficam contentes! 
Sento-me num café, as perguntas curiosas despontam naturalmente e aí a minha saudade ganha forma e começo a derreter-me em histórias. É bom ver no olhar das pessoas a surpresa e o espanto de coisas que existem e estão tão longe de nós e, é melhor ainda sermos nós o veículo de informação, explicarmos e descrevermos os cenários, pessoas, culturas, é como estar a pintar um quadro. Um quadro bonito e vivo, um quadro com cheiro e sabor que se vai aproximando e envolvendo cada vez mais as pessoas, e esse sentimento fugaz é único, vimos e temos consciência que criámos algo, algo que fica e que as pessoas guardam, algo com valor, é um privilégio fazê-lo! O cenário é bastante mórbido quando o desfecho é diferente, quando estamos a contar algo a alguém e essa pessoa nos diz "Ahhh, está bem, que bom! Olha sabias que o café do não sei quantas fechou? Eu sempre disse que aquilo não ia durar muito tempo!". Nestes momentos parece que levámos uma injecção de dormência, paramos e pensamos que nós estamos diferentes, já não somos os mesmos, algo mudou, muito antes de nos termos apercebido desta mutação espiritual. Regressar é bom, mas até que ponto? É bom recarregarmos baterias, recebermos os mimos calóricos dos pais e irmãos, ir aos super mercados e pensar que vai ter tudo aquilo que nós queremos comprar porque o jumbo ou o pingo doce não estão à espera que chegue o ferry boat com leite, natas ou coca-cola da indonésia. É muito bom, mas até que ponto? Qual é o prazo de validade deste sentimento? Não sei... já tentei procurar mas a validade não aparece, acho que vou ter de ser eu a estipular. O problema é que não basta alimentar o físico, é necessário alimentar a alma, e essa é uma verdadeira tirana, faz do nós o que quer, molesta-nos sem darmos conta, repreende-nos.. e o corpo lá se vai vergando e regrando pelos seus vícios e admoestando-se pelos seus caprichos. E vive-se assim, meros peões das vontades vis da alma. Não se pode fazer nada, a solução é caminhar e percorrer de mãos dadas com ela os caminhos sinuosos da vida e aprender em conjunto, pode ser que um dia se encontrem e vivam uma história de amor.
Nada é igual ao que era ontem, cada vez acredito mais que nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos, e tal como dizia Orson Welles, "somente através do amor e das amizades é que podemos criar a ilusão, durante um momento, de que, não estamos sozinhos".


Malai na ilha do Crocodilo - Luz


Tudo passa (não é o que dizem?).
A primeira impressão é sempre dúbia e algo relutante, contudo, acaba por se tornar amenizada, híbrida e posteriormente doce. Afinal, Timor-Leste é bonito!
Após ter vivido 5 meses na ilha do lafaek, os sentimentos convertem-se. Viver em Timor é embarcar numa aventura, uma aventura onde se desconhece o ponto de chegada ou as paragens intercalares, uma aventura destemida. É uma ilha com uma história e cultura escrita a sangue, a qual ainda é bem presente nos semblantes dos locais, tudo passa, mas a dor e a mágoa persistem sempre.
Quando se viaja e transferimos o nosso pesado invólucro, que se arrasta pelo chão dos vícios, mimos e hábitos traiçoeiros é necessário criar uma distância deste, sussurrar-lhe calmamente ao ouvido e ir despindo-o devagar, como se fosse uma criança que fazer a birra. Assim ele vai cedendo, esmorecendo, as curvas plissadas dissipam-se perdendo cor e ficando mais moles. Aí é altura de o começar a moldar novamente e adaptá-lo, com calma e sensatez e educá-lo para algo que é novo e desconhecido e explicar-lhe que o que é novo não é necessariamente mau. Com tempo, as birras passam, a alma torna-se mais inócua e predisposta. Tempo de iniciar a caminhada com uma mente ávida de experiências!
Timor-Leste, o sítio onde tudo é inesperado e diferente. O sal assemelha-se a açúcar e o sal ao açúcar, quantas vezes me enganei a fazer o arroz, um arroz de tomate doce. Acaba por ser complicado decifrar certas atitudes e comportamentos, a adaptação não é automática, as coisas são desprovidas de sentido, ou então sou eu que não consigo perceber o verdadeiro âmago delas, sofre-se de miopia cultural. No início era algo que me causava algum formigueiro cerebral, mas tudo passa, e aos poucos e poucos foi passando…
No café:
“Boa tardi mana, coca-cola?” – Malai (estrangeiro)
“Sim, há!” – Mana (rapariga)
“Óptimo! Coca-cola ida se faz favor!” – Malai
“Sculpâ Senhora não há..”- Mana
“Não há? Acabou de me dizer que tinha!” – Malai
“Há mas não tem!” – Mana

Este é o cenário mais hilariante em Timor-Leste, e quem sabe está neste preciso momento a esboçar um sorriso envergonhado, pois sabem que é assim quase todos os dias, “Há mas não tem!”.
Aqui tudo se move com pés de chumbo, bem devagar devagarinho e com muita calma, os ponteiros do relógio arrastam-se e oscilam paulatinamente. Há tempo para tudo, um tempo bailarino e harmonioso sempre ao som das colunas das microletes românticas com nomes como “amo-te”, “Saudade”, “Cristiano Ronaldo”, dos apitos de saudação persistente dos táxis e das vozes inquietantes que nos assaltam com “ pulsa, pulsa, sim card?”. É Timor-Leste, não nos podemos sobrepor ao relógio local, uma coisa são os nossos tempos acelerados e conturbados, outra coisa é o tempo fleumático em Timor-Leste, tempo mole em cabeça dura, tanto acaricia que conquista! Portanto, temos aqui uma suave fricção, nada que não passe também, acabamos por nos vergar e perceber que temos de respeitar esse tempo, um tempo cansado pelo calor confortável que merece respeito!
Independentemente dos fusos horários que não são compatíveis com aqueles que o Google nos dá, percebi que os Timor é um lugar especial e que tem muito para nos oferecer, para além de ser das nações mais jovens do mundo, um país em plena adolescência, é muito bom saber que estou num sítio onde tudo se encontra num estágio extremamente vernacular e embrionário. Sei que daqui a uns anos, vou poder dizer como os meus avós “Na altura em que estive em Timor...” porque eu fiz parte, ou pelo menos tento na minha esfera pessoal mudar, ou tentar moldar, que é menos invasivo, determinados comportamentos para melhor. Não podemos entrar aqui em divergências ideológicas e culturais do que é melhor ou não para um povo. Penso que para decifrar este pequeno enigma, basta pensar que o melhor é algo que os vai ajudar futuramente, só pelo facto de poderem ter a oportunidade de terem a opção, depois se o fazem ou não, já não depende de mim nem de ninguém, mas tiveram opção de escolher, avaliar e interpretar. É de facto uma experiência única poder estar em Timor, a única coisa que nos torna ricos é viajar, que para tal também é necessário ter oportunidade e disponibilidade. É algo que ninguém nos pode locupletar, podem-nos tirar tudo na vida, penhorar sonhos, hipotecar sentimentos, mas, aquilo que vivemos e sentimos é nosso, e isso está guardado num cofre à prova de estereótipos e inveja. Já faz parte de nós, do nosso adn!
Obrigada Timor! Obrigada Timor por fazeres de mim uma pessoa melhor, por me reiterares a ideia de que estamos em constante mutação espiritual, por me ajudares a encontrar 10% de mim própria, por me ensinares que posso comer arroz e frango com uma colher, que posso viver com menos daquilo que eu pensava, que posso tomar banho de água fria e não me queixar, por me fazeres deixares de gostar de expresso e apreciar café timor, por me tornar uma pessoa mais benevolente, pela maravilhosa água de côco que me ofereces, pela companhia deambulante, por me fazeres crer que a vida é aquilo que nós queremos que seja e por todos os momentos e experiências boas que me ofereceste que fizeram crescer a minha inteligência emocional!
Se isto fosse quantificável teria de pagar um excesso de peso colossal, teria de me chatear no aeroporto e tentar “subornar” a hospedeira tão querida do aeroporto de Díli, o que me vale é que as máquinas do aeroporto, portadoras de uma tecnologia de ponta, ainda só detectam a quantidade e não a qualidade!


Uma Malai em Díli



Dia 28 de Abril de 2012 Chegada a Díli, Timor-Leste


Aterrar em Díli, foi como ter aterrado em outro planeta!
Uma confusão tremenda, mal saí do avião senti logo na cara o ar quente e perfumando de Timor-Leste! 
O céu estava carregado, e mal saí do aeroporto caiu um verdadeiro dilúvio.
"Começar de novo" era a frase que me pairava na mente a cada km que era feito.
 Era tudo novo e tudo diferente, nada era igual ao que eu já tinha visto, nem tão pouco se assemelhava a Africa,Vietname ou à Indonésia, era Timor Leste!
Senti que estava completamente anestesiada, não falava, só ouvia e parecia tudo tão estranho, quanto mais ouvia as pessoas a falar, com um discurso seguro, confiante e com um sorriso no semblante mais pequena eu ficava.
Tentava colmatar estes sentimentos que literalmente me assolavam os pensamentos sem sequer pedir permissão com panaceias instantâneas, "tudo tem um motivo de ser", aquela frase de âmago gigantesco e profundo que exala água oxigenada para as feridas momentâneas da alma e as desinfecta e mitiga. É confortável pensar assim, pelo menos temos um norte que subjaz a tudo o que fazemos, mesmo que seja um disparate. Os meus sentimentos chatearam-se e decidiram dividir-se 70% nadava em completa amorfidade e os restantes drogados 30% estavam em completa letargia, os quais foram vencidos rapidamente pelo jetlag.
De vez em quando lembrava-me, estou em Timor, essa informação ainda não tinha sido muito bem processada pelo meu cérebro, mas a minha sombra de 22 kg em forma de mala que me perseguia para todo o lado ajudava-me a lembrar disso a cada instante. Só me lembrava da alegoria da caverna de Platão, mas é uma alegoria mais personalizada a minha e com contornos diferentes em que eu inverto o objectivo da alegoria, neste caso as amarras a velhas crenças e pensamentos até se avistavam bastante cómodas e suaves, não as queria libertar, eram o meu invólucro que me protegia e abrigava e que já tinha a forma do meu corpo. Estava claramente em processo de negação!
Quando estava na cama, depois de um dia que mais pareciam 5, lembrei-me de uma oração que me embalou e ajudou a adormecer " Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. é o tempo da travessia, e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado sempre à margem de nós mesmos".

Ámen

Emigrante


A minha vida há 4 meses atrás era uma autêntica ataraxia. Todos os dias tinham o mesmo sabor, os mesmos sentimentos, os mesmos pensamentos...como comida que não se gosta e que se mastiga eternamente para dissuadir o sabor e a mente.
Acordar e pensar "não me quero levantar e ir para um escritório gasto e carcomido por emoções de lassidão" só me apetecia virar para o lado e fingir que adormeci. Vencida e empurrada pela não resignação decidi declarar guerra à minha própria vida e colocar-lhe freio, há que colocar o nosso nome e a nossa hegemonia naquilo que é nosso, certo?
Todos os dias das 9h da manhã às 18h eu visitava sites e enviava o meu CV. Este processo foi um processo preguiçoso e que se movia lentamente, durou meses. Todos os dias recebia e-mails a agradecer a minha candidatura, mas que neste momento não estavam a recrutar, o típico, já adivinhava o conteúdo antes abrir os emails. Chegou um momento em que o quadro mudou de cores e algo de novo se avistava, lentamente, como se fosse um barco ao fundo do mar, que no início parecia uma simples canoa e que, conforme me aproximava mais, se transformava num verdadeiro Titanic, o Inov Contacto. Candidatei-me sem saber sequer para onde poderia ir, os destinos pareciam-me todos exóticos e a oportunidade “remunerada”.
O Titanic levou-me parar a Timor!



Família

Tudo começou obviamente com os comentários típicos da família:

- " Ai tão longe!! Não podes trocar? "- dizia a minha mãe intrigada.
- "Olha se quiseres não vais, não tens de ir, olha agora para Timor..." - assobiava o meu pai.
- "Gina tens de ter cuidado com as cobras de coral que atacam repentinamente, tens de a saber identificar e outra coisa muito importante, se por acaso houver um Tsunami, foge logo para as montanhas, não te ponhas a chamar toda a gente, não há tempo para isso, foge mas é!!! - diziam os gémeos com os olhos muito abertos.
 -"Timor? Que bom!! Isso é uma óptima notícia, parabéns" - dizia alegremente o Lino.
- "Timor? hmmm...não podia ser mais longe não é? claro que não tinhas de ir para o fim do mundo.. ainda por cima não tem neve, oh devias era ter ido para o Chile, aí sim eu podia fazer umas boas férias, agora Timor..." - lamentava-se o Carlos.

 Um prólogo fantástico que antecede o virar de uma grande página, que mais parecem 100.




Os ponteiros do amor


Uma tarde solarenga de Primavera num banco de jardim! Que brisa deliciosa que me beija as bochechas. Fecho os olhos e deixo-me escorregar pelos sonhos deleitosos da estação. Que cheirinho a perfume das flores que espreitam dos canteiros envergonhados. A temperatura veste-nos a pele e a paixão o coração. Penso em ti. Há tempos vi-te da janela a passear no jardim, inspiravas alegria a cada passo e expiravas inspiração. Debruçava-me no parapeito da janela só para te ver mais perto, porque no amor estes poucos centímetros contam.
O relógio já deu 15h e tu não apareces. Não quero acreditar que foste roubar inspiração a outro jardim ou a outro coração, pensar nisso esmorece-me e encontro-me numa manhã de inverno.
Avisto um homem ao longe. É muito baixo para ser quem eu espero. Não podes ser tu.
De repente, o homem entra no jardim, mas o sol inexaurível brincava comigo e, impediu-me de lhe ver os olhos. O homem emanava desassossego e sabedoria nos passos. A curiosidade, esse catalisador feminino, encaminhou-me para ele numa dicotomia de desfaçatez e vergonha ao mesmo tempo. Algo me intrigava.
- Desculpe, o senhor por acaso não está à espera de alguém? – pergunto eu com avidez.
- Não, quem eu procurava já me abandonou há muito. Neste momento só erro pelos jardins para acalmar a saudade do meu coração que me corrói durante o dia. À noite saro as minhas feridas nas tabernas, pois os fantasmas noctívagos são mais obstinados. – respondeu-me aquela alma perdida.
- Que vida triste que o senhor deve ter… - confidenciei-lhe eu.
- Triste? Triste é não amar e viver do amor dos outros! Eu amei com todo o meu coração. Amei tanto que continuo a amar. Existe maior plenitude que a transcendência de um amor? – disse-me o senhor com os olhos muito arregalados, tão arregalados que até consegui ver o meu âmago perplexo.
Ele sentiu na minha expressão a minha anuência tácita e seguiu caminho, acariciando a cada passo todas as flores que via. Ganhei naquele instante consciência de topo o meu corpo e de todos os meus músculos. Percebi que o meu coração devoluto não se importa de esperar por ti todas as horas intermináveis debruçado na varanda. Quero estar pertinho de ti, dar-te beijinhos com inspiração, o meu amor florido e viver uma primavera eterna contigo.





O encontro

O céu estava cinzento e a chuva continuava obstinada. As malas estavam feitas e a casa estéril. Tudo se movia com pés de chumbo, até os ponteiros dos segundos. A minha pressa era maior que a minha impaciência e, a minha impaciência menor que a inércia. Não sabia de deveria ir. Fiquei submersa nestes pensamentos pretorianos algumas horas. A ideia de partir perseguia-me de maneira intermitente.
Tomei uma decisão, a de ir sem pensar no amanhã de um ficar. Afinal nada me prendia neste país bolorento, tudo me aborrecia e entediava mas, o conforto da certeza era um sentimento almofadado que me aconchegava as incertezas. Vou. Escrevi um bilhete a despedir-me: “Querida casa vou partir! O facto de te conhecer tão bem deixa-me certa, e certezas com a minha idade não é o que quero ter no bolso. Adorei os momentos que partilhamos, vou guardar comigo todos os segredos confidenciados, desesperos e felicidades vividas. Desculpa a exiguidade literária mas estou com pressa. Um abraço do teu tamanho!”
Peguei nas malas, passaporte e vontade de viver e bati a porta.
O trajecto para o aeroporto foi longo mas suave, sentia que ia ficando mais leve a cada km que percorria. O encontro estava marcado para as 10h. O tempo era escasso, e a minha sofreguidão pelo cumprimento escrupuloso do compromisso era colossal. Cheguei 1 minuto depois da hora marcada. Fui presenteada com o peso ausência, a grande amante da solidão. Quando cheguei o chão ainda exalava sorrisos sarcásticos da minha pressa. Ele partiu e não cumpriu. De que vale a pressa?  Desprezei o tempo, não lhe dei a atenção de que era merecedor e ele não esperou por mim, nem um minuto. Gostava de poder mover o meridiano e ganhar mais uma hora, se bem que me bastava um minuto. Um minuto foi o tempo que eu precisei para mudar a minha vida. Peguei nesse minuto, embrulhei-o, dobrei-o em 12h, sem o vincar muito e embarquei. Um minuto. A fracção de tempo que eu precisei de perder para perceber todo o ecossistema esotérico e físico que me circundava. Não estou sozinha. Num bambúrrio entrego-me assim ao mundo apenas num minuto, espero uma eternidade inexaurível de horas de felicidade e anos infinitos de aprendizagem. Embarco a valorizar todos os minutos frémitos disfarçados dos relógios inclementes.


O contrato já estava assinado...

Mas o que é que importa? Está tudo bem, porque se arreliam tanto? Já não se sabe que é assim? Afinal onde reside a dúvida? Esquece lá isso! O país está recortado em pedaços irregulares, os nossos reptos oscilam nas ondas do vento e as nossas orações levadas nos bicos das gaivotas. Vejo telemóveis que nos acenam todos os dias nas ruas, por aquilo que percebo são iphones, não sei é o modelo mas as mãos são portadoras de classe numérica. Qual a melhor régua para medirmos o nível de riqueza oca? Ir ao teatro é caro! Muito bem estamos então no limiar dos 5/10 euros. E ir jantar no sábado à noite? Ou frequentar a orla de discotecas nocturnas? Isso já é muito acessível e culturalmente estimulante!
Que belo paradigma de antíteses que vivemos nos dias que nos cumprimentam. Os meus olhos ficam confusos com a ambiguidade dos tempos e com o eufemismo dos sentimentos que nos assolam.
Os sem abrigo que mendigam nas calçadas e portas de igrejas, já fazem parte dos mosaicos de contradições da calçada portuguesa, são moradores residentes numa cidade onde os semblantes sorridentes são sempre os dos turistas. Emprego é uma quimera e educação uma mentira. Erram na rua olhares perdidos. O ar está saturado. O largo do Carmo grita de forma ensurdecedora. País de grandes feitos históricos, mar, mar e mar, escorregamos para lá e não sabemos nadar! Ficámos ludibriados com o “canto das sereias”, os capitães não se amarraram aos mastros, nem ordenaram aos marinheiros que tapassem os ouvidos.
Candidaturas recheadas de esperança caiem na caixa de entrada todos os dias, escorregam direitinhos para um item que aspira todos os emails “itens eliminados”. Telefonemas são esperados para entrevistas. Pensa-se na roupa que se poderá eventualmente usar. Pesquisa-se na internet “dicas” para o primeiro contacto com a empresa. Treina-se o discurso em frente ao espelho da casa de banho. Estuda-se a empresa. Decora-se a sua sinopse. Vestimos uma cara confiante e simpática. Adornamo-nos com segurança e profissionalismo. Revemos 100 vezes o curriculum e imprimimo-lo várias vezes. Os dias passam-se e as semanas seguem-se, brotam novidades. “Vamos estudar a sua candidatura, obrigada pelo seu interesse!”


Não há nada a fazer, o contrato já estava assinado com o amigo do director que tem doutoramento na escola secundária para o cargo….Saudades do futuro? Nunca senti tanto Pessoa!

O pensamento insolente

Tantas certezas suspensas no vácuo do vazio, tão poucas seguranças veementes e tantas dúvidas que naufragam a implorarem socorro curvadas nas cavernas da alma. Não existem certezas no nosso caminho a trilhar sob a forma de vida com olhos pernas e braços. Tudo muda, tudo abraça uma cinestesia ambulante. O tempo amolece a fúria, domestica a impetuosidade selvagem e coloca freios à expressão, mas não ao pensamento. O pensamento, ai o pensamento, um eterno selvagem, sem modos nem etiquetas come primeiro a sobremesa e acaba no prato principal, coloca os braços em cima da mesa e não limpa os lábios nem mesmo quando estes estão maculados com mentiras. Nada disso, com aquele ar vespertino arregaça as mangas e desafia-nos. Que mal-educado que é, sangue quente de adolescente e irreverência obstinada, lá está ele sentado com o seu ar fleumático. Passa o tempo por nós, de forma sublime por vezes exorciza-nos do nosso pensamento prevaricador e ensina-nos a viver em paz connosco e com os nossos fantasmas burgueses. Acaricia-nos a alma, dá-nos um beijo de boa noite, queremos cerrar as pálpebras, velar sobre o pensamento e descansar. Bate à porta a noite, é o sossego do desassossego. Não conseguimos silenciar esta voz interior que nos assola a cada momento, vem sem aviso prévio, molesta-nos o coração, verga-nos aos caprichos dela e manuseia-nos como uma marioneta. Pensamento, o nosso verdadeiro não o heterónimo mas sim o homónimo.
Podem florescer campos infinitos garridos de flores e amor, crianças brincando nas espumas das ondas, tudo isso é uma verdade indelével para os sentidos. Mas o pensamento, esse, está sempre à espreita. De olhar soslaio ele absorve-nos com a sua iridescência mágica e faz-nos tropeçar no mundo das mil possibilidades, um jogo de espelhos ardiloso, um labirinto que resvala para um afluente modorrento.
Podes entrar, hoje já não és estrangeiro, já não és estranho. Hoje, aceito-te, com a bandeira e a espada prostradas no chão. És parte de mim, o meu âmago, catalisador camuflado de todas as sensações, voz consciente virtuosa das premissas mais genuínas da vida, és a aprendizagem que vou agarrar mais tarde que agora procrastino e que, empurro devagarinho com o dedo para o sabor não ser amargo.


Panaceia: Adam Smith

Fugir não é sinal de cobardia. Durante toda a minha vida andei a fugir de tudo aquilo que que me molestava o coração. Para quê ficar e assistir às Divinas Comédias do passado? Cumprimentar demónios diariamente no elevador? Sonhar com pesadelos? Prefiro fugir e deitar-me sobre o olimpo da incerteza e entregar-me à beleza do desconhecido. Não gosto de remediar, de tentar sarar, de pisar as feridas, de ficar com sangue nos sapatos. Gosto de fugir, de "dar o sermão aos peixes" às feridas e deixá-las a alimentaram-se de oxigénio enquanto fecham sozinhas. Tudo isto se passa com um processo muito parecido à da mão invisível de Adam Smith, que regula e equilibra tudo. É essa a minha metodologia, até porque nunca percebi muito de mercados e economias tal como não entendo muito das oscilações da oferta e da procura do amor, então fujo e o Adam Smith trata de tudo.Era a frase que mais ouvia nas aulas de micro-economia na faculdade, ficou-me incrementado como uma panaceia. Não sou estóica, compadeço-me com o mal alheio, com os infortúnios e com a austeridade da vida. Prefiro dedicar-me ao epicurismo da alma e ao bucolismo dos sonhos. Como tudo nesta passagem no mundo dos homens é efémero, não vale apena mergulharmos num quarto escuro, sufocante e sem janela. Vou sair pela porta e vou fugir. Faço na mesma o funeral dos meus pensamentos guturais, são todos exorcizados e vão direitinhos para o purgatório mal atravesso a porta. As coisas não são assim tão simples, é todo um processo, nada vai de chofre. Eles vão ter que se confessar e se expurgar de todos os males que me causaram. Têm que ficar imaculados, purificados e esclarecidos acima de tudo, porque se não continuam a pingar cólera lá de cima. Mancham-me a vida e o meu percurso e eu, torno-me um bode expiatório. Não pode ser, cada um foge para diferentes pontos cardeais.

A minha alma é indómita e rugosa, não é permeável à minha vontade lacrimosa. Não deixo que a vida me soçobre. A vontade de viver está à frente de mim, somos dois heterónimos de um homónimo. A mesma diz-me que todos os sítios são impessoais e frios até o adornarmos com o nosso amor. Mas, se a cor faz vénia à palidez, o amor fica tão rasteiro que nem o vento dá por ele e, a luz se envergonha perante a solidão e fica morna, eu fujo, porque remediar um amor sem vida é assistir ao meu velório vestida de noiva.

O Sr.º Amor

Dia dos namorados, dia em que se celebra o amor! Vêm-se nas ruas corações palpitantes em cima das cabeças das pessoas, prendas histéricas a saltar em forma de embrulho para fora das lojas algemadas a uma mão subordinada a um coração apaixonado. Ramos vermelhos a colorir a visão dos transeuntes transbordando paixões exaltadas, que fazem cócegas irritantes aos corações solitários e que, fazem soluçar sorrisos forçados que se formam bem devagar até aparecerem os dentes onde nós lemos “que pirosada” mas de quem ouvimos “que flores lindas”. Uma verdadeira antítese de amor. Ou então, flores mais despidas e pobrezinhas mas rodeadas de versos de poesia no ar que gritam amor, porque o amor nunca é pobre. Os mais pequeninos trocam as suas primeiras cartas de amor envergonhado e imaculado na escola, fazendo brotar assim alguns pedidos de namoro, com as cruzes no “sim, não ou talvez” que aparecem nas mochilas das meninas (e dos meninos também claro).
Ah que quadra tão cheia de sentimento, o nosso coração acorda de um sono profundo e ataráxico no dia 14 e decide ser lamechas. Ser lamechas é bom, é óptimo! Ele salta para um trapézio cheio força e exorciza todo o amor reprimido e escondido no coração, sofre uma morfogénese, respira oxigénio, abre os olhos e vive, o amor vive e explode no dia 14 como foguetes e caiem pozinhos mágicos do céu (parecidos com aqueles da Sininho do Peter Pan, sim aqueles que fazem voar).
Não, como já puderam constatar, não vou resvalar no cliché de dizer que sou contra o dia dos namorados argumentando que “o amor deve ser celebrado todos os dias”, porque isso todos nós sabemos (ou sentimos) nem vou tropeçar na cólera e dizer-vos que, este dia é uma “tontice”, porque também não concordo com tal ideia impregnada numa melodia triste de amargura.
Que dia lindo e perfumado! Ficou ainda melhor quando me deparei com o Sr. Amor, não podia ter sido brindada com melhor companhia, que maravilha. Corri para o abraçar de braços esticados e abertos, quando ele me diz:
 - Ai não me atrapalhes! Falamos depois que agora estou com muita pressa, não sabes que dia é hoje? Arre! – dizia ele ofegante  a correr e a cambalear ao mesmo tempo com a sua gabardine bege e chapéu à Carlos Gardel.
Está muito bem, pensei eu conformada! Já nem o amor tem tempo para mim, encolhi os ombros e continuei o meu percurso pela rua do Carmo, ladeada de ruas estampadas com corações, com um número nas vitrinas, 14.
Bem, e assim se passou o dia, numa narcose de amor constante. A nossa atenção flutua entre o onírico e a realidade que acabam por se misturar revolucionariamente por osmose.
No final deste dia tão quente, quando regressava a casa, voltei a encontrar o Sr. Amor, aquele desgraçado, mas desta vez ele estava diferente. Estava calmo, sentado numas escadas lúgubres, ignoto na sombra do seu pensamento. As suas bochechinhas cor de nácar estavam húmidas, as suas sobrancelhas descaídas com o pesar do seu desgosto e o seu semblante entorpecido. Aquele quadro de Paula Rego de amor babaço comoveu-me, aproximei-me dele com passos tímidos e perguntei-lhe:
-Então Sr. Amor, está tudo bem? Precisa de alguma coisa?
Ele desviou o olhar macilento para o chão cravado de pastilhas gastas e copos boémios e respondeu:
-Sim… preciso de amor, já é dia 15, sinto-me esquecido, com frio e sem encanto, como a Cinderela depois da meia-noite sem o seu sapatinho – murmurava o Sr. Amor.
- Entre Sr. Amor, vamos beber um chá quente os dois, prometo-lhe que daqui a 365 dias se sentirá vivo novamente, embora o mundo precise de si todos os dias do ano! – sussurro-lhe eu enquanto fecho a porta de casa.