terça-feira, 1 de abril de 2014

O Sr.º Amor

Dia dos namorados, dia em que se celebra o amor! Vêm-se nas ruas corações palpitantes em cima das cabeças das pessoas, prendas histéricas a saltar em forma de embrulho para fora das lojas algemadas a uma mão subordinada a um coração apaixonado. Ramos vermelhos a colorir a visão dos transeuntes transbordando paixões exaltadas, que fazem cócegas irritantes aos corações solitários e que, fazem soluçar sorrisos forçados que se formam bem devagar até aparecerem os dentes onde nós lemos “que pirosada” mas de quem ouvimos “que flores lindas”. Uma verdadeira antítese de amor. Ou então, flores mais despidas e pobrezinhas mas rodeadas de versos de poesia no ar que gritam amor, porque o amor nunca é pobre. Os mais pequeninos trocam as suas primeiras cartas de amor envergonhado e imaculado na escola, fazendo brotar assim alguns pedidos de namoro, com as cruzes no “sim, não ou talvez” que aparecem nas mochilas das meninas (e dos meninos também claro).
Ah que quadra tão cheia de sentimento, o nosso coração acorda de um sono profundo e ataráxico no dia 14 e decide ser lamechas. Ser lamechas é bom, é óptimo! Ele salta para um trapézio cheio força e exorciza todo o amor reprimido e escondido no coração, sofre uma morfogénese, respira oxigénio, abre os olhos e vive, o amor vive e explode no dia 14 como foguetes e caiem pozinhos mágicos do céu (parecidos com aqueles da Sininho do Peter Pan, sim aqueles que fazem voar).
Não, como já puderam constatar, não vou resvalar no cliché de dizer que sou contra o dia dos namorados argumentando que “o amor deve ser celebrado todos os dias”, porque isso todos nós sabemos (ou sentimos) nem vou tropeçar na cólera e dizer-vos que, este dia é uma “tontice”, porque também não concordo com tal ideia impregnada numa melodia triste de amargura.
Que dia lindo e perfumado! Ficou ainda melhor quando me deparei com o Sr. Amor, não podia ter sido brindada com melhor companhia, que maravilha. Corri para o abraçar de braços esticados e abertos, quando ele me diz:
 - Ai não me atrapalhes! Falamos depois que agora estou com muita pressa, não sabes que dia é hoje? Arre! – dizia ele ofegante  a correr e a cambalear ao mesmo tempo com a sua gabardine bege e chapéu à Carlos Gardel.
Está muito bem, pensei eu conformada! Já nem o amor tem tempo para mim, encolhi os ombros e continuei o meu percurso pela rua do Carmo, ladeada de ruas estampadas com corações, com um número nas vitrinas, 14.
Bem, e assim se passou o dia, numa narcose de amor constante. A nossa atenção flutua entre o onírico e a realidade que acabam por se misturar revolucionariamente por osmose.
No final deste dia tão quente, quando regressava a casa, voltei a encontrar o Sr. Amor, aquele desgraçado, mas desta vez ele estava diferente. Estava calmo, sentado numas escadas lúgubres, ignoto na sombra do seu pensamento. As suas bochechinhas cor de nácar estavam húmidas, as suas sobrancelhas descaídas com o pesar do seu desgosto e o seu semblante entorpecido. Aquele quadro de Paula Rego de amor babaço comoveu-me, aproximei-me dele com passos tímidos e perguntei-lhe:
-Então Sr. Amor, está tudo bem? Precisa de alguma coisa?
Ele desviou o olhar macilento para o chão cravado de pastilhas gastas e copos boémios e respondeu:
-Sim… preciso de amor, já é dia 15, sinto-me esquecido, com frio e sem encanto, como a Cinderela depois da meia-noite sem o seu sapatinho – murmurava o Sr. Amor.
- Entre Sr. Amor, vamos beber um chá quente os dois, prometo-lhe que daqui a 365 dias se sentirá vivo novamente, embora o mundo precise de si todos os dias do ano! – sussurro-lhe eu enquanto fecho a porta de casa.

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